O Incidente de Pejudicialidade ao Processo de Guarda previsto na Convenção sobre os Aspectos Civis d
O “Sequestro Internacional de Crianças”, também conhecido por Sequesto Interparental, uma vez que não se trata especificamente de um sequestro como o tipificado pelo Código Penal, mas de uma remoção pelo guardião – ou quem detinha a guarda – não autorizada de criança ou adolescente que residia em estado estrangeiro, vindo a viger as tratativas pela Convenção da Haia de 1980.
A Convenção tem dois objetivos principais: a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; e b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante.
Segundo a Convenção, a transferência ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) tenha havido violação a direito de guarda atribuído a pessoa ou a instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção; e b) esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou em conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
Como cada Estado trata de forma diferente o contexto da guarda, e para alinhar o entendimento a Convenção adotou o pressuposto que o direito de guarda referido no texto signatário pode resultar de uma atribuição de pleno direito, de uma decisão judicial ou administrativa ou de um acordo vigente segundo o direito desse Estado.
O compromisso assumido pelos Estados-partes, nesse intrigante tratado multilateral, foi estabelecer um regime internacional de cooperação, envolvendo autoridades judiciais e administrativas, com o objetivo de localizar a criança, avaliar a situação em que se encontra e, só então, restituí-la, se for o caso, ao seu país de origem. Busca-se, a todas as luzes, apenas e tão-somente atender ao bem-estar e ao interesse da criança ou adolescente.
O contexto do bem-estar e interesse é oriundo do desdobramento da Doutrina da Proteção Integral, incorporada no texto constitucional pelo artigo 227 pelas influências da Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU 1959) e com sinalagmática proteção pela Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/90), efetivando à criança uma proteção especial tal como enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança, reconhecida da mesma forma na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos Artigos 23 e 24), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular no Artigo 10) e nos estatutos e instrumentos pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que se interessam pelo bem-estar da criança.
A norma, portanto, deve sempre se atentar pela prioridade absoluta do incapaz e melhor interesse na aplicação das medidas de proteção.
Assim, prioritariamente, deve os Estados Contratantes tomar todas as medidas apropriadas que visem assegurar, nos respectivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para tal, deverão recorrer a procedimentos de urgência, visando, antes de tudo, minimizar os impactos negativos para o infante.
O manejo de ação judicial de busca e apreensão fundada na Haia, que tem competência Federal para o trâmite, busca reconhecer os aspectos objetivos alinhados no artigo “3” da Convenção, qual seja declarar que a transferência ou retenção da criança ou adolescente esteja insculpida como sendo ilícita.
Para tanto, é necessário que se abra o aspecto probatório de modo a averiguar o cumprimento dos dois objetivos da norma, como já dissemos: que tenha havido violação a direito de guarda atribuído a pessoa ou a instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção; e esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou em conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
Somente depois – friso: somente depois – de ter havido a comprovação de tais requisitos, é que podemos aplicar a cooperação para retorno da criança, conforme disposto no artigo “8” da Haia.
Mesmo assim, a autoridade judicial ou administrativa respectiva, após expirado o período de um ano da transferência declarada ilícita, poderá rejeitar o retorno da criança/adolescente, provando que ela já se encontra integrada no seu novo meio.
Ademais, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retomo da criança se a pessoa, instiuição ou organismo que se oponha a seu retomo provar: a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
Outro impeditivo como forma de ordenar ao retorno quando se verificar que a criança ou adolescente se opõe, respeitando o grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
O estudo psicossocial é bastante importante, já que ao apreciar as circunstâncias referidas como excludentes ao retorno, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.
Daí que se pergunta: diante de tantas variáveis, é compatível com o sistema de proteção ao infante suscitar incidente de prejudicialidade externa (alínea “a” do inciso V do artigo 313 do Código de Processo Civil), quando a criança precisa de, ao menos, um sistema que regulamente — ainda que de forma temporária — a sua permanência no local em que se encontra?
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já nos ensinou que “na ação de busca e apreensão em curso na Justiça Federal, cinge-se o julgador ao exame da ocorrência de transferência e retenção ilícitas de criança e de eventual motivo para a recusa da restituição. 2. A decisão sobre o fundo do direito de guarda e visitação é do juiz de família. 3. A cooperação internacional estabelecida pela Convenção de Haia tem por escopo repor à criança seu status quo, preservando o juiz natural, assim entendido o juiz do local de sua residência habitual, para decidir sobre a guarda e regulamentação de visitas. 4. Inexiste conexão entre a ação de busca e apreensão e a ação de guarda e regulamentação de visitas, senão, apenas, prejudicialidade externa, a recomendar a suspensão desta última.” CC132100BA2014
É sabido que quem detém a guarda, “obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros” (artigo 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente), regularizando a posse de fato, deferindo ao detentor o direito legal de representação da criança/adolescente, conferindo a condição de dependente para todos os fins de direito, inclusive previdenciários.
O manejo inadequado do incidente de prejudicialidade externa, contribui apenas para sedimentar uma situação irregular da criança/adolescente, na qual ficará desprovida de amparo legal até a decisão da busca e apreensão disposto na Haia.
É certo que diante das Tutelas de Urgência insculpidas no artigo 300 do Código de Processo Civil e na permissibilidade de decisões a atos urgentes a fim de evitar dano irreparável (artigo 314 do Código de Processo Civil), em atendimento ao insculpido no artigo 227 da Constituição Federal e nos diplomas internacionais que regem a proteção integral, o incidente de prejudicialidade externa deve ser deferido apenas quando houver ressalva a manter vigente a decisão que concede a guarda — que seja em caráter de temporariedade — ao guardião, até a retomada da marcha processual, após sentença de mérito no processo prejudicial.
Desta forma, seguindo o disposto no artigo 16 do Decreto nº 3.413/00 – Haia, as autoridades judiciais ou administrativas somente não podem tomar decisões sobre o fundo de guarda (prejudicialidade externa), sem que haja transcorrido um período razoável de tempo sem que seja apresentado pedido de aplicação da Convenção.
No contexto protetivo, não nos parece desarrazoado dizer que o artigo “16” da Haia é inconstitucional quando confrontado pelo artigo 227 da Constituição Federal, quando não respeita a Doutrina da Proteção Integral; e na mesma sintonia é inconstitucional quando confrontado com o inciso XXXV do artigo 5º (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) e impede que tanto o juízo federal quanto o juízo estadual a análise da guarda temporária da criança/adolescente.
A decisão acerca de eventual prejudicialidade em nada, repito: em nada, influenciará o juízo discricionário que cuida do processo de Busca e Apreensão acerca dos requisitos de devolução da criança/adolescente para a origem, se houver o preenchimento dos requisitos exigidos pela Haia a devolução da criança/adolescente, já que “o simples fato de que uma decisão relativa à guarda tenha sido tomada ou seja passível de reconhecimento no Estado requerido não poderá servir de base para justificar a recusa de fazer retornar a criança nos termos desta Convenção, mas as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão levar em consideração os motivos dessa decisão na aplicação da presente Convenção.” (artigo 17 do Decreto nº 3.413/00 – Haia)
Desta forma, concluindo, que entendemos ser contrário ao interesse do abarcado pela Doutrina da Proteção Integral qualquer decisão que venha a suspender o processo de guarda, acatando o incidente de prejudicialidade sem que haja ao menos uma decisão temporária pela guarda.